1 de junho de 2012

Ela vivia com um menino.


Hoje acordei louca atrás de um texto que escrevi em 2006 quando ainda acreditava que escrevia direitinho e tinha planos de, algum dia, juntar tudo e escrever meu próprio livrinho. Lembrei disso que escrevi sobre morar com alguém numa época em que não tinha a menor idéia do que isso significava. Hoje eu vivo com um menino. Aliás, com dois. E é diferente, mas é igual. Hehehehe! Então, gente, "tá" aí. Acho fofinho, gosto de reler de tempos em tempos. Espero que vocês gostem também!


Ela vivia com um menino
Ana Paula da Fonseca

Acordou. Enquanto esticava os braços na intenção de espreguiçar-se, sentiu a toalha molhada largada do lado esquerdo da cama. Antes mesmo que abrisse os olhos, sorriu. Lembrou-se: "agora vivo com um menino". Sonhava com isso desde criança: casar, constituir família, ser feliz. Tudo bem que as coisas não eram assim tão certas, mas eram certas na medida do possível.
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As roupas sujas espalhadas pelo chão denunciavam que ela morava com um menino e ali, naquele reinado que os dois dividiam, podia-se fazer de tudo ou não fazer nada. Não fazer nada era mais freqüente: não pegar as roupas sujas do chão ou a toalha molhada da cama. Sim, era um menino. E ele deixava o all star na porta da sala. E ela também não recolhia, ela gostava. Quando via o all star na porta, ela sabia: ele estava em casa.
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Então levantou-se da cama e foi até a cozinha. A pia imunda, a pilha de louça da noite anterior ainda estava ali esperando mãos caridosas. Às vezes isso a irritava, em casa a limpeza era impecável. Mas lembrou do menino da sua casa, seu irmão, e de como ele fazia a mesma bagunça e esperava que as meninas da casa, ela e sua mãe, arrumassem tudo sem reclamação.
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Certamente as coisas eram diferentes no tempo de sua mãe. E, quiçá, de sua avó. Com carinho deixou-se ser levada pelas lembranças das estórias que ouvia quando pequena, naquele momento entre a irritação pela sujeira e o doce sorriso que carregava ao lembrar que aquilo, nada mais era, que a evidência de seu menino pela casa. E, como vovó e mamãe faziam, cabia a ela limpar, cuidar, assear, alegrar, agradar o menino. Porém ela não é como sua avó e sua mãe. E nunca seria.
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Sorriu mais uma vez e pensou no sorriso do seu menino. Ele era totalmente desorganizado e tocava guitarra de madrugada, com fones no ouvido. Ela ficava deitada no sofá observando e sentindo-se toda boba. O seu menino tocava guitarra com paixão, compunha as melodias mais bonitas que ela conhecia. Quanto orgulho! Mas orgulho não lavava roupa, louça, banheiro... Ah, morar com um menino era assim! Ela, no entanto, não reclamava.
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Mentira! Ela reclamava de lavar banheiro. Aliás, reclamava tanto que decidiu parar de fazer isso. Definitivamente ela não era como as mulheres das gerações passadas, tão tradicionalmente preocupadas em cuidar incessantemente da casa, dos filhos, do marido, de seu mundo particular.
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E foi aí que a Maria entrou em cena. A Maria tinha trabalhado na casa dela, ou melhor, na casa dos pais dela, quando ela era pequena. E a Maria era muito organizada mesmo. E limpava o banheiro. E passava a roupa. E lavava a louça, se ela não lavasse logo de manhã. E muitas vezes ela preferia deixar a Maria lavar mesmo, era muito mais prático.
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Então preparou uma xícara de chá e foi até a varanda do apartamento. O dia estava ensolarado. O Rio de Janeiro é ensolarado, quase sempre. Imaginou onde o menino dela estaria. Pensou que, provavelmente, estaria resolvendo algum trabalho. Ah, sim, o menino dela era músico. E ele não dormia. Quer dizer, dormia. Mas nos horários mais inexplicáveis possíveis. E ela, que sempre teve horário para dormir e para acordar na casa que, agora, era dos pais, às vezes não conseguia acompanhar o menino e acabava "capotando" mesmo no sofá enquanto ele praticava inúmeras vezes as suas canções. E o menino, então, carregava ela para a cama. E quando ela acordava, a toalha molhada estava lá. Às vezes ele estava lá, mas muitas vezes era a toalha molhada mesmo, indicando que ele tinha saído em busca do que colocava aquele sonho de pé.
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Ela já tinha se formado e até estagiado em bons lugares. Mas, no momento, ela ainda estava decidindo o que fazer. O último estágio tinha sido rígido demais. E com o menino ela tinha aprendido a ser menos preocupada e não aceitar tantas rédeas assim. Ruim? Sua mãe não gostava, com certeza. Achava que a filha estava fazendo tudo ao contrário. Juntando-se com um rapaz assim, "tão sem futuro", dizia. E deixando para trás tantas boas oportunidades que, ela mesma, não teve enquanto jovem. Mas impedir a filha? Não, não. Enquanto ela vivesse por suas próprias pernas, a mãe não interferiria. E assim era.
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Da varanda foi para o banho. A Maria ia chegar a qualquer momento para colocar ordem no lugar. Que sua mãe não visse de perto o estado daquele apartamento! Ou sua avó... Tão mais preocupada com a organização e o asseio como havia de ser para as pessoas nascidas em outros padrões.
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Ela tinha um dia longo caminhando pela cidade e fotografando as cenas do dia-a-dia carioca. Isso a entretinha enquanto pensava no que fazer. Pensava em abrir sua própria empresa. Pensava nos colegas de faculdade. Pensava em fazer algo dela, onde ninguém fosse patrão de ninguém. "Porque ter patrão é muito chato", repetia baixinho consigo mesma. O menino dela também não tinha um. Ele era livre e ela queria ser também. Era uma casa livre. Era um sonho livre.
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Era um conto de fadas sobre um reino distante, onde a princesa vivia com um menino.



Um comentário:

  1. Lindo!!! Também viv com um menino e me identifiquei demaiscom o seu texto! Parabéns!!

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